Cenas de uma Feira de Santana contemporânea em uma “vingança de motoboy”: violência, prostituição e drogas na dita Princesa do Sertão.


Foto: Reprodução
vida louca

Diego Carvalho Corrêa.[1]

A produção cinematográfica nos permite a imersão em uma linguagem determinada pela dinâmica da ação imagética sedutora em nossa sociedade moderna. O cinema ganhou estatuto próprio através de manifestações de técnicas de produção textual.  Na estruturação (normatização) do conteúdo do cinema, forças emergiram e definiram formas de praticar o filme, difundido certas chaves culturais, entendidas, estas, como pontos recepção do filme possibilitando e determinando aos sujeitos receptores quase que uma homogeneidade na significação de filmes. Fenômeno observável, por exemplo, na classificação dos gêneros, ação, ficção, romance, Werstern e etc. O filme “Vida Louca - A vingança de um motoboy” como um texto cinematográfico, significante de uma história, usa uma dessas chaves. O roteiro segue um modelo de ação, com lutas, romance, galã e um desfecho emocionante sintetizado no slogan de capa: “um homem pacato, um destino trágico, uma missão a cumprir”.

O filme é caracterizado por Guilherme Sarmento como um naif.
O naif no cinema adequa-se ao real, denunciando seu estatuto de representação através de idiossincrasias estilísticas motivadas pelo amadorismo, a prática de um conhecimento audiovisual espontâneo e adestrado por procedimentos já codificados pela espectatorialidade cinematográfico.[2]
Uma obra que se caracteriza por seguir as formalidades de estética cinematográfica, parcos recursos e a realização e execução do filme sem profissionais, apresentou originalidade numa surpreendente história que tem como palco principal a rotina de uma cidade excludente e violenta. Sucesso não de bilheteria, mas de vendas no camelô com uma procura superior aos filmes de hollywood na cidade. Inspirado em histórias simples de trabalhadores, o personagem principal é um motoboy clandestino que vive um drama consequente de seu envolvimento com pessoas ligadas ao tráfico de drogas e ao tráfico humano através da prostituição de mulheres.

Retrato de uma Feira contemporânea, os diretores do filme optaram por locais conhecidos onde a Princesa altaneira mostra suas contradições, subordinada agora daquilo que a sociedade moderna produziu contra si. Distante dos viadutos, a Princesa se mostra real e súdita da pobreza, violência, comércio e consumo de drogas. Ainda assim, a cidade mantém o título, reconhecido ou ao menos esperado, desde meados do século XX como lugar de oportunidades de sobrevivência econômica. Vindo de Cachoeira o clandestino motoboy encontrou no transporte de pessoas uma possibilidade de sobrevivência, realidade comum de muitos trabalhadores de Feira que resiste desta forma informal já que a regulação oficial da prestação de serviço é de monopólio da prefeitura municipal.
A violência é caracterizada, a quase todo momento, com relação ao mercado das drogas, produção, distribuição, circulação e consumo, porém podemos observar algo a mais que caracteriza seu exercício. Neste caso a violência como uma afirmação de uma masculinidade, de certa maneira sertaneja, que se tentou esvair com projetos de uma cidade civilizada burguesa no século XX. Como atesta Kleber Simões, as ideias e principalmente práticas civilizadoras oriundas de um ideal republicano difundido na cidade na primeira metade século XX, encontrou oposição de uma forma organizativa na lida tradicional, a dos grandes produtores do solar da fazenda, do típico homem de um modelo patriarcal, que resolvia seus problemas de forma individual e particular, sem paciência e sem mediação por outrem.
O modelo de civilização impunha a sociedade o Estado como mediador, monopolizador do exercício da violência física, assegurando sua legitimidade a partir da transformação do modelo tradicional de masculinidade em um padrão novo.
O código legal servia para enquadrar os indivíduos a um comportamento masculino aceitável, mediado pelo ideal de masculinidade definida pela sociedade para uma dada época e espaço, e assim como a modernidade instituiu uma sociedade baseada no autocontrole e na disciplinarização das emoções, caberia aos homens resolver suas contendas sem laçarem mão do recurso da violência física. [3]
Como reação a este novo código de conduta com referências urbanas silenciadoras do campo, emergiu a reação rural, a construção do homem do pastoreio, “resultado desse processo de reafirmação de valores frente às críticas impostas pela modernidade” este é “pautado pelo signo da bravura, da força, do destemor, da incivilidade, da tradição e da virilidade”.[4] Diante da emergência deste modelo normativo da primeira metade do século XX, o filme nos permite visualizar a permanência de determinadas práticas tidas por determinados grupos como incivilizadas, e mesmo um padrão masculino vivenciado pelo protagonista, que incorpora o modelo tipificado como homem do pastoreio. Aparentemente reprodutor de uma violência consequente do seu jeito de ser homem. Retrato quase fiel de uma cidade que ganhou notoriedade nacional por seus altos índices de violência,[5] principalmente masculina,[6] podendo ser observado os índices mais altos em alguns bairros periféricos e no centro da cidade, ou mesmo podemos constatar a importância do cenário natural do filme que aponta bairros com índices elevados de assassinatos.
A relevância da produção é garantida pela abordagem realística do tema, e pela apresentação do ambiente, pela construção de personagens e pelos interpretes destes. O reconhecimento do lugar de realização do filme pelo espectador permite a construção de certa afinidade com a imagem, num roteiro que questiona as qualidades da Princesa do Sertão, apresentando características reais de uma terra de Lucas. O filme certamente pode ser lido como uma obra ficcional da história de Feira.


[1] Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana.
[3] SIMÔES, Kleber José Fonseca. Os Homens da Princesa do Sertão: Modernidade e Identidade Masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador: 2007.  Dissertação de Mestrado. P. 106.
[4]SIMÔES, Kleber José Fonseca. Os Homens da Princesa do Sertão: Modernidade e Identidade Masculina em Feira de Santana (1918-1938). Salvador: 2007.  Dissertação de Mestrado P.118.
[5] “Violência em Feira de Santana atrai emissoras de TVs ao município.” Assim foi à manchete do blog Central de Polícia, ressaltando em sua matéria a veiculação nacional de reportagens policiais realizadas no município. http://centraldepoliciafsa.blogspot.com.br/2011/09/violencia-em-feira-de-santana-atrai.html Visto em 10 de dezembro de 2012.
[6] O perfil das vitimas de violência em Feira de Santana em dados até 2005, era de uma maioria de “adolescentes e adultos jovens, na faixa etária de 15 a 29 anos de idade, de raça/cor parda ou preta, de sexo masculino, grau de instrução fundamental.” Página 8868. MOURA, Cláudio Luiz de Araújo; ARAÚJO, Edna Maria de; CHAVES, Joselina Maria. Mortes por causas externas: Modelagem através de geotecnologia dos homicídios ocorridos no perímetro urbano da cidade de Feira de Santana – Ba no período de 200-2005. Anais do Simpósio Brasileiro de sensoriamento Remoto – SBSR, Curitiba, PR, Brasil, 30 de abril a 05 de maio de 2011, INPE. www.dsr.inpe.br/sbsr2011/files/p0775.pdf Visto em 10 de dezembro de 2012.