Na terra de Lucas...

Diego Carvalho Corrêa[1]

Para inaugurarmos esta coluna, apresentamos brevemente à nossa proposta inicial. Nossa coluna tem por objetivo criar um meio de interlocução do site com a população da cidade através da História local. É intenção proporcionar ao leitor, através de textos, análises não definitivas da história desta cidade, aproveitando para mensalmente divulgarmos referências de pesquisas da nossa cidade.

Não poderíamos neste primeiro texto deixar de demonstrar uma possibilidade da leitura da história daquele que inspira nome deste site, o Lucas Evangelista ou “Lucas da Feira” [2]. Polêmico pelas disputas em torno de representações sociais sobre si, até a atualidade a personagem Lucas desperta controvérsias e gera debates que se realizam na sociedade civil e entre seus representantes políticos. Quem foi este escravizado e liberto que tanto despertou paradoxos?

Primeiro ponto a analisarmos é em que momento este viveu. Lucas nasceu entre 1804 e 1807, em São José das Itapororocas, atual distrito de São José em Feira de Santana. Escravizado pertencente ao Padre José Alves Franco proprietário da fazenda “Saco de Limão”, vivia sob os olhos do violento Feitor Teotônio Madragoa. Os registros deixados sobre o negro Lucas nos apontam uma vida de sofrimento, humilhação e muita revolta. A vida escrava induzia milhares de negros à morte nas viagens do trafico negreiro ou nos trabalhos forçados na fazenda, às condições de vida dos escravizados os levaram muitos a buscar e criar possibilidades de libertação ou ao menos de amenização das condições de trabalho e vida. As formas encontradas iam desde a apatia no trabalho, fugas temporárias ou definitivas, até formas mais extremas como o suicídio e infanticídio, este último um meio de impedir o sofrimento das crianças.  Ressaltamos que o ser humano não nascia escravo, não possuía uma essência escrava, ele era escravizado por alguém em algum momento, portanto era uma condição imposta por outros sujeitos como no caso dos senhores de Lucas. Apesar de nascido em fazenda escrava, este foi submetido a uma série de mecanismos de repressão e convencimento que o colocasse nesta circunstância de escravizado, não havendo, porém, aceitação por parte dele.

Devido às condições em que viveu Lucas optou pela fuga, este não aceitava a sua condição de escravizado, porém em momento algum encontramos indícios ou evidências de o escravizado haver questionado a condição coletiva da escravidão, mas somente a sua condição individual é o que parecia preocupá-lo. A situação histórica levou Lucas à fuga e colocou a sua frente à possibilidade de liderar um grupo de homens, escravizados fugidos ou não, num bando de salteadores que iriam fazer fama na região. A não absorção de negros no trabalho livre, a falta de terras, os cooperadores, tanto de grupos sociais pobres como comerciantes e produtores rurais abastados da região, a fraca atuação da repressão do Estado e seu contingente reduzido de policiais, são parte das condições que favoreceram a opção destes fugitivos e, garantiu uma existência duradoura de suas ações.

O bando ficou conhecido pelos seus ataques violentos na região, assaltos, furtos, assassinatos e estupros foram relatados em documentos oficiais e depoimentos registrados a época. Aqui reconhecemos todos os crimes efetivados pelo bando, mas também apresentamos brevemente as condições em que estes sujeitos viviam as poucas ou única possibilidade de vida que estava posta. No regime escravo, estes homens em fuga, não tinham muitas oportunidades de sobrevivência se não através do crime. Poderia haver algumas, a exemplo do quilombo de resistência e revoltas coletivas com objetivo de superar o regime como o caso da “Revolta Malê” na Bahia em 1835, mas nossa história nacional mostrou que quilombos de maior extensão e revoltas populares negras foram reprimidas com o assassínio de seus membros por parte do Estado e de jagunços de Senhores, então entendemos que o bando foi à maneira que esses sujeitos encontraram para realizar a manutenção de suas vidas.   

Lucas e seu bando ganharam notoriedade pela sua durabilidade, raros bandos de salteadores no Brasil duraram mais de uma década no período. A popularidade atingiu o governo imperial que lançou edital de premiação para quem pegasse o fugido, sendo que este foi pego em tocaia com apoio de seu companheiro de bando Cazumbá, posteriormente enforcado em 1849.

O corpo de Lucas encontra-se enterrado na Igreja da Matriz em Feira de Santana, há uma intensa disputa entre grupos locais em torno de representações sobre a História do escravizado. Importante é questionarmos os mais variados interesses simbólicos evidenciados nestes conflitos de representação e, para nos posicionarmos recuperar o que for possível da história do sujeito.

De um lado grupos sociais populares que reconhecem Lucas como uma personagem importante, símbolo da resistência à escravidão na região, mesmo que se reconheça que atitudes de seu bando não possam ser respaldadas de forma positiva. Estes que defendem o Lucas - importante dizer que o autor se incorpora a este grupo - tem interesse de assegurar para a personagem esse lugar de resistência, nos mostrando que nossa história tem perdas e glórias e estas precisam ser lembradas, pois nos ensinam.  Outros grupos locais apenas dizem ser o Lucas um bandido, argumento defendido pelos setores dominantes da época, tanto por produtores que dependiam da escravização de negros, como setores de grupos de comerciantes da cidade que se sentiam lesados pelos assaltos cometidos pelo bando. Por estes sujeitos dominarem o aparato do Estado, à escravização de negros era considerada legal, não sendo estes considerados criminosos por sua condição de usurpadores de vidas, em contrapartida aquele que ousasse se libertar era sim considerado um criminoso. A história de Lucas mostra que nossa região foi marcada por momentos tristes, porém enfrentadas com muita coragem pelos oprimidos, ajudam a pensar que memória é lugar de disputas entre grupos dominantes e subalternizados.

Lucas e seu bando não eram os únicos escravizados de nossa região, havia outros, não podemos reduzir à escravidão vivida em Feira a história de um só sujeito e seu bando para que não silenciemos outros sujeitos oprimidos e consequentemente os sujeitos que sobreviviam da exploração desta forma de trabalho.

Concluímos este primeiro texto mostrando que nossa história foi atravessada pela exploração de homens e mulheres, porém, estes sujeitos também inventaram suas formas de resistência de acordo com as oportunidades do momento vivido. A superação da escravidão foi definida por formas de oposição que pressionaram o regime, junto a outros fatores que forçaram a sua transformação.



[1] Mestrando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana e pesquisador do Laboratório de História e Memória da Esquerda e Lutas Sociais/Labelu/UEFS.
[2] As informações deste texto foram tiradas principalmente da dissertação de mestrado de Zélia Lima que pode ser encontrada na Biblioteca Central Julieta Carteado/UEFS. Ver: LIMA, Zélia de Jesus. LUCAS EVANGELISTA: o Lucas da feira, estudo sobre a rebeldia escrava em Feira de Santana. (1807-1849). Salvador/Bahia:UFBA, 1990. Para maiores estudos sobre a escravidão na região de Feira de Santana podem ser encontrados outros estudos. Ver: FREIRE, Luiz Cleber Moraes NEM TANTO AO MAR, NEM TANTO À TERRA: AGROPECUÁRIA, ESCRAVIDÃO E RIQUEZA EM FEIRA DE SANTANA, 1850-1888.  Salvador/Bahia: UFBA, 2007. NASCIMENTO, Flaviane R. E as mulheres da Terra de Lucas? Quotidiano e resistência de mulheres negras escravizadas (Feira de Santana, 1850-1888), Monografia de graduação, UEFS, Feira de Santana, 2009.

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