Algumas breves questões sobre as origens de Feira de Santana.


fazenda_olhos_dagua_2006_alt_feira_de_santana
Diego Carvalho Corrêa[1]
Este breve texto recupera um velho debate, um tanto quanto superado para alguns, porém ainda recente. Retomado pela mídia local anualmente, não como questão, mas sim como afirmação da formação de um lugar espacial e temporal em que sujeitos constituíram, ou foram atores principais, da gênese da cidade de Feira de Santana. Estamos tratando, como sugere o título, das origens da cidade.
Discutir origens talvez seja o menos importante, afinal encontrar o momento exato onde sujeitos peculiares deram os primeiros passos para a formação de uma cidade, seja até impossível. Prefiro pensar feito um arqueólogo[2], melhor entender as funções de um mito fundador, de disputas interpretativas em torno das origens, do que ela propriamente dita.
Seriamos por demais prolixos nesta tentativa de buscar essas sonhadas origens, possivelmente, e o que os indícios mostram é que os primeiros habitantes desta região foram indígenas da etnia paiaiá os quais não obtivemos nenhuma fonte para estuda-los até o momento. [3]
O principal mito sobre a fundação da cidade que circula na mídia versa sobre a construção de uma capela em homenagem a Senhora Santana na propriedade do casal Domingos Barbosa de Araújo, português,[4] e Ana Brandão. Estes teriam relevância primordial para o crescimento da região, pois em suas terras aconteciam encontros comerciais e religiosos favorecendo o desenvolvimento da principal característica que seria atribuída posteriormente como “vocação” da cidade, o comércio.
Eurico Alves, importante escritor das relações entre fidalgos e vaqueiros do sertão baiano, ressaltou essa importância, submetido ao olhar crítico de pesquisadores, logo se reconheceu certo olhar de valorização dos traços europeus para o mito, os colonizadores portugueses trouxeram consigo a engenhosidade, tecnologia e inteligência, tudo isso sintetizado em um discurso de defendia uma civilidade eurocêntrica. [5]
O olhar do autor reflete um contexto, inclusive historiográfico, onde escritores importantes da História do Brasil em busca da consolidação de uma identidade nacional defendiam teses sobre o bom português, [6] momento em que houve também uma ascensão de grupos de comerciantes locais por meio da Associação Comercial de Feira de Santana, entidade de classe que reivindicava a “vocação” da cidade para o comércio, portanto o mito foi reforçado por uma necessidade de momento mesmo que ainda presente[7]. O casarão dos Olhos D’Água seria o lugar espacial desta origem e seus proprietários os responsáveis.
Segundo Monsenhor Renato Galvão, a primeira notícia de concessão de terras na região do que seria Feira de Santana, foi para Miguel Ferreira Feio, dentre outras, em 1619 para João Peixoto Viegas.[8] Este último conseguiu multiplicar suas terras em latifúndios e cresceu financeiramente por meio do comércio, considerado pelo autor o desbravador e povoador da região. Apesar de reconhecer a existência de escravos e mesmo o povoamento da margem esquerda do rio Jacuípe por índios Paiaiás, isso através da documentação consultada, o Monsenhor em momento algum sugere que estes são povoadores da região, deixando uma marca no seu texto que é a desconsideração de grupos oprimidos.
O mais importante de submeter à crítica dos homens os mitos construídos por sujeitos, é perceber quais interesses podem ser apreendidos em tais justificações, ou mesmo a mera reprodução de um discurso, isto esconde subterfúgios, ordenações, poderes circunscritos, operado para silenciar diversos sujeitos e suas histórias. Uma pergunta me foi ensinada em algum momento da vida acadêmica pelo professor Eurelino Coelho, sugerida como potencialidade do historiador que adquire em sua prática o hábito de perguntar. Foi mais ou menos assim que elaborou a questão: “Quem cozinhava, arrumava a casa, realizava serviços domésticos, de manutenção da fazenda, comércio, dentre outros em uma época de escravização de negros no Brasil, sendo que só havia fidalgos e vaqueiros no sertão de Eurico?” Os fidalgos e suas senhoras realizavam os serviços domésticos? Ou mesmo os vaqueiros com todas as suas ocupações na fazenda fariam isso?  O que podemos afirmar é que houve e há um silenciamento da presença negra e índia, e sua importância na região, disseminado em mitos sobre de origens de Feira de Santana.

[1] Mestre em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana e pesquisador do Laboratório de História e Memória da Esquerda e Lutas Sociais/Labelu/UEFS.
[2] Assim como Michael Foucault, prefiro a arqueologia e a genealogia da história.
[3] Ver: LIMA, Zélia de Jesus. LUCAS EVANGELISTA: o Lucas da feira, estudo sobre a rebeldia escrava em Feira de Santana. (1807-1849). Salvador/Bahia: UFBA, 1990.
[4] Monsenhor Galvão sugere que este não era português. Ver: GALVÂO: Monsenhor Renato de Andrade Galvão. OS POVOADORES DA REGIÃO DE FEIRA DE SANTANA. IN: SITIENTIBUS, Feira de Santana, p.25-31, jul/dez, 1982.
[5] Análises sobre Eurico Alves e o mito fundador em Feira de Santana, são encontradas em: SÉ, Frederico Nascimento Sento.  O mito fundador e a negação de negro na obra “Fidalgos e vaqueiros”. IN: SILVA, Aldo José Morais. HISTÓRIA, POESIA, SERTÃO: Diálogos com Eurico Alves Boaventura. Feira de Santana; UEFS Editora, 2010; Monsenhor Renato de Andrade Galvão. OS POVOADORES DA REGIÃO DE FEIRA DE SANTANA. IN: SITIENTIBUS, Feira de Santana, p.25-31, jul/dez, 1982 & ANDRADE, Celeste Maria P. de. Origens do povoamento de Feira de Santanaum estudo de história colonial. 1990. Dissertação (Mestrado) – Curso de Mestrado em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1990. Vale lembrar que esta é uma coluna de divulgação, exposição de ideias, portanto as referências aos autores de questões são feitas com a devida ética profissional que o trabalho exige. É importante reconhecermos os autores e divulgarmos suas pesquisas, apesar do curto espaço que a coluna impõe.
[6] Desde a independência do país com a tese de Karl Philipp von Martius, até Gilberto Freyre, foi comum essa valorização do português. Posteriormente com Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, dentre outros, houve uma crítica que passou a defender o sujeito nascido no Brasil para construção de análises históricas. Ver REIS, José Carlos. AS IDENTIDADES DO BRASIL DE VARNHAGEN A FHC. Rio de Janeiro, RJ;Editora FGV, 2006.
[7] Na década de 1960 e 1970, com a criação de entidades de classes industriais, há um novo discurso vocacional na cidade, desta vez o da indústria. Ver MONTEIRO, Jhonatas Lima. Interesses Hegemônicos na Margem da Periferia: ação política de dirigentes industriais em Feira de Santana (1963-1983), Feira de Santana, 2009.
[8] GALVÂO: Monsenhor Renato de Andrade Galvão. OS POVOADORES DA REGIÃO DE FEIRA DE SANTANA. IN: SITIENTIBUS, Feira de Santana, p.25-31, jul/dez, 1982.

Nenhum comentário:

Postar um comentário