O direito a memória em Feira de Santana e a Santa Casa de Misericórdia. (1859-2011).


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Período da ditadura militar, o prédio sedia o batalhão da Policia Militar da Bahia. Dia da entrega das viaturas (As moreninhas).

Diego Carvalho Corrêa[1]

Neste texto[2] traçamos brevemente uma argumentação relativa à importância histórica[3] do casarão construído em 1859 na cidade para abrigar o imperador D. Pedro II, e conseqüentemente expomos ao público um debate sobre o tema de um prédio que está previsto para o tombamento pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural IPAC - Bahia.
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O que que hoje parece ser a frente, na verdade é o fundo do casarão

O casarão que vem resistindo ao tempo, já bastante deteriorado, foi utilizado, a partir do mesmo ano do termino de sua construção (1859), como primeiro hospital de atendimento público em Feira de Santana. Funcionou até o ano de 1958 como Santa Casa de Misericórdia, momento da mudança de localização onde o casarão passou a ser quartel-general do Batalhão da Policia Militar da Bahia. Atualmente é o ultimo prédio público construído no século XIX que permanece de pé na cidade. Aproximadamente há três décadas, tornou-se sede da ONG Associação Palácio de Acolhimento ao Menor, abrigando crianças em situação de vulnerabilidade social, sendo que para estas crianças, a ONG foi e é a única alternativa de moradia e afeto.


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O casarão durante o passar do tempo ganhou valor histórico e afetivo na cidade, tornando-se alvo de disputas entre grupos socais pela utilização do espaço, a memória constituída sobre este prédio passou a ser objeto de contendas.
Segundo Edgar de Decca;

a memória é a vida, sempre guardada pelos grupos vivos em seu nome, ela está em permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconscientes de suas deformações sucessivas e de súbitas revitalizações[4]
Partindo deste conceito percebemos que a memória é lugar de conflitos entre grupos sociais subalternizados e dominantes. Grupos dominantes elegem mecanismos para estabelecer uma relação com o passado favorável ao domínio político desejado, porém, nesta disputa de forças, subalternizados constituem sua relação com este mesmo passado muitas vezes de forma autônoma, constituindo igualmente mecanismos de resistência para assegurar uma posição política em relação ao passado que reflita no presente. No bojo das investidas das disputas sociais, essa memória se revitaliza a cada momento tornando-se aspecto importante para construção das identidades, onde ela, a memória, organiza relações no presente.
O direito a memória deve ser assegurado como aspecto que elabora e reelabora relações sociais, deve-se garantir aquilo que legalmente não está posto, o direito de se relacionar com seu passado de forma autônoma, pois, “ser membro da consciência humana é situar-se com relação a seu passado”, este que é “uma dimensão permanente da consciência humana, um componente inevitável das instituições, valores e padrões da sociedade”. [5]

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Na construção do casarão histórico foi mobilizada a iniciativa do empresariado local, poder público e trabalhadores que modificaram seu cotidiano dando forma ao palácio que abrigaria o Imperador do Brasil, que de fato não chegou a se acomodar no casarão, porém no mesmo ano outorgou o prédio como sede da Santa Casa de Misericórdia da cidade. A Santa Casa durante anos atendeu e tratou de enfermidades de pessoas da cidade e seu entorno ficando na memória popular de muitos, a referência de uma obra beneficente da cidade.
Muitos homens públicos da cidade, clérigos e empresários locais, foram administradores da Santa Casa, a exemplo de Arnold Silva, Eduardo Fróes da Motta, Gastão Guimarães, Monsenhor Mario Pessoa e o ex-prefeito José Ronaldo de Carvalho que se tornou provedor em 1983 permanecendo até o ano de 1984. Nestes muitos anos de atuação da Santa Casa, [6] esta permaneceu como grande referencial para os pobres enfermos da cidade que só possuem como alternativa para tratamento além desta, o Hospital Regional Cleriston Andrade.
Além da alusão afetiva que o prédio alimentou para grupos populares da cidade, outras memórias, mesmo de momentos difíceis, são importantes para conhecermos melhor nosso passado. Homens corajosos que fizeram parte de movimentos de oposição ao regime militar revelaram uma memória de torturas realizadas no local, no memento que sediou o batalhão da polícia. Neste, militantes comunistas foram presos e torturados em seu subsolo, Celso Pereira e Sinval Galeão nos depoimentos do filme documentário “Chuvas de Março”, [7] relataram a presença de um capelão estrangeiro que veio para contribuir com o regime militar e seus tentáculos locais. O capelão tinha por função “moralizar” os comportamentos dos sujeitos da cidade, foi responsável pela prisão de muitos na ditadura, no casarão, os militantes citados, foram encarcerados. Ainda permanece em uma das portas do casarão - um tanto quanto conservada- a inscrição: “sala do comandante”.

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Essa placa ocupa o local onde antigamente era a entrada do casarão

Atualmente o prédio pertence ao SESC, convive com os danos do tempo e da falta de investimentos para sua conservação, porém tendo grande valor social pela prestação de serviço social e filantrópico ao sediar a Associação Palácio de Acolhimento ao Menor e econômico por estar situado no centro urbano do município.
É preciso perceber a dimensão que a memória e a história tem para formação de sujeitos sociais e os aspectos de dominação e resistência política que esta admite para partirmos para construção de outra noção de patrimônio histórico de forma mais abrangente. Estamos em acordo com Maria Célia Paoli:

A noção de "patrimônio histórico" deveria evocar estas dimensões múltiplas da cultura como imagens de um passado vivo: acontecimentos e coisas que merecem ser preservadas porque são coletivamente significativas em sua diversidade [8].

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Situação do prédio foto tirada em 19 de agosto de 2011

As primeiras manifestações observadas na cidade quanto à luta em prol da defesa do prédio e das crianças datam de 2006, quando começa uma querela entre alguns cidadãos organizados e o poder público municipal. A monitora do PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e Secretária da Associação de Moradores do Bairro do Santo dos Prazeres, Ana Rita Costa Oliveira enviou uma carta ao Presidente da República solicitando a interferência deste na doação do prédio, preservação deste e das crianças que lá vivem; “A comunidade de Feira de Santana pede sua interferência junto ao Gestor Municipal (...)” [9]. Em seguida o Deputado Estadual Zé Neto escreve uma indicação de tombamento para Assembléia Legislativa[10]. Em 2008[11] foi organizada uma Comissão de Luta pelo Palácio, o grupo traçou linhas de luta, dentre as quais a mobilização no campo jurídico. Como resultado da disputa, em 2008 o IPAC deu parecer favorável ao tombamento considerando o valor histórico dado pela população local através da Comissão de Defesa do Palácio do Menor. Relatava o parecer do arquiteto Paulo Roberto Pinheiro Nunes;

(...) a edificação é testemunha de uma história local a ser considerada, tendo sido objeto de uma recente campanha, desenvolvida pela “Comissão de Defesa do Palácio do Menor”, composta por diversas entidades representativas da cidade (...). [12]


Considera ainda que a características do interior do prédio já se perderam, “só restou a maior parte das fachadas”, sendo assim;

O foco da proteção legal deve ser a permanência de sua volumetria e a revitalização do conjunto, para que o prédio e seu entorno imediato possam voltar a ter um uso sócio-cultural capaz de garantir sua sustentabilidade. [13]

Em 09 de março de 2009, as crianças que eram abrigadas no palácio foram transferidas para que a Prefeitura executasse a doação do prédio ao Serviço Social do Comércio (SESC), órgão que visa à construção de um restaurante popular no local, pois era “(...) projeto do SESC há muito tempo pleiteado pelo presidente do Sindicato dos Comerciários de Feira (SICOMFS), José Carlos Morais”[14]. Segundo este, “O restaurante vai ser de grande importância para pessoas que trabalha no comércio” [15], desconsideradas pelo sindicalista as atividades de assistência realizadas no local, além de não se referir em momento algum à importância histórica do prédio e sua preservação.
Quanto à situação dos menores residentes no casarão, a Secretária de Desenvolvimento Social do Município, Lucia Miranda afirmava que “Elas irão para um lugar melhor”, em contrapartida a Diretora do Palácio do Menor[16], Maria Antônia Pedreira, resistindo à transferência argumentava: “São 25 anos de atividades sociais destinadas para as pessoas da cidade” [17], respaldada pelo Juiz da Vara da Infância e Juventude Valter Junior, “Existe ali um trabalho que formam gerações de homens de bem” [18], assim a permanência no lugar foi disputada pelos grupos no campo da memória afetiva.
Nas investidas da Comissão de Defesa do Palácio do Menor no campo jurídico, o argumento central se baseava na irregularidade quanto à observação do que regula a Constituição Federal e art. 17 da lei 8.666/92, lei de licitações. No texto o advogado[19] descreve:

(...) a alienação de bens depende de autorização do legislativo, de avaliação prévia e de concorrência, que não aconteceu, registrando-se que apenas é dispensada a licitação em caso de doação, permitida exclusivamente para outro órgão ou entidade da Administração. [20]


Ressalvava ainda a falta de competição e de oportunidade de disputa quanto à posse do prédio, “esta desafetação padeceu de vícios, uma vez que o local objeto da doação é utilizado para uma finalidade publica” [21]. Na alegação técnica, o advogado demonstra conhecimento e domínio das leis e uma interpretação de caráter prático dentro das regras do jogo jurídico, porém, o que não resultaria de forma positiva, já que o Ministério Público encaminha o processo com muita lentidão. O processo também solicitou a posse do prédio pela ONG por usucapião[22]. No decorrer do litígio o SESC optou por não começar a construção do projeto, o que parece permanecer até o atual momento, mesmo que contrapartida da doação já tenha sido legitimada em Cartório junto a Prefeitura Municipal.
O mediador do litígio jurídico ainda não deu resultados definitivos quanto à interpretação da denuncia dos setores civis contra a prefeitura.  No jogo jurídico o acesso às respostas oficiais encaminhadas pelo poder público municipal ao Ministério Público, não foi disponibilizada para a Comissão interessada, tão pouco para este artigo, o que demonstra o quanto a burocracia retarda lutas de dimensões que consideramos importantíssimas para história da cidade. São muito comuns neste país os atrasos nos julgamentos de processos jurídicos, o que em certa medida pode favorecer alguma das partes interessadas, neste caso interesses privados apoiados no poder público.



[1] Mestrando em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana e pesquisador do Laboratório de História e Memória da Esquerda e Lutas Sociais/Labelu/UEFS.
[2] Uma primeira versão deste texto foi publicada nos Anais do Seminário do Grupo de Pesquisa em Geografia dos Movimentos Sociais em 2010. Ver: O direito a memória e a luta no campo jurídico em Feira de Santana In: I Seminário do Grupo de Pesquisa em Geografia dos Movimentos Sociais: associativismo, desenvolvimento e territorialidade, UEFS, Feira de Santana, 2010. Anais do Seminário do Grupo de Pesquisa em Geografia dos Movimentos Sociais: associativismo, desenvolvimento e territorialidade, 2010.
[3] O livro Assistência e Caridade: A história da Santa Casa de misericórdia de feira de Santana. (1859-2006) do médico e professor João Batista de Cerqueira lançado em 2007 pela UEFS é a principal obra de referencia histórica sobre o prédio público e seu valor.
[4] Decca, Edgar de. Memória e Cidadania. IN O direito da memória: patrimônio histórico e cidadania. DPH, SP, 1992, p. 130-131.
[5] HOBSBAWN, Eric. O sentido do passado. Sobre História. São Paulo: Cia. das letras, 1998.
[6] Hoje a Santa Casa de Misericórdia continua em atividade, recebeu o nome de hospital D. Pedro de Alcântara em homenagem ao Imperador D. Pedro II.
[7] Filme que serviu como trabalho final do curso de pós-graduação em cinema e áudio visuais oferecido pela UFBA. Produzido por Volney Menezes e Jonny Guimarães.
[8] PAOLI, Maria Célia. O direito à Memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992.
[9] Documento ao Presidente da Republica Luiz Inácio Lula da Silva. Feira de Santana-BA, 16 de setembro de 2006. Esta se encontra na ADUFS, Associação Docente da Universidade Estadual de feira de Santana.
[10] Indicação: N° /2006. Estado da Bahia. Deputado Zé Neto.
[11] São encontrados em 2008 os primeiros registros da Comissão de Defesa do Palácio do Menor, porém sem uma data precisa.
[12] Parecer Técnico. IPAC-BA. CEPEL/SUDOM, 08 de outubro de 2008, p. 4.
[13] Idem, p.4.
[14] Folha do Norte, 27 de julho de2008
[15] Folha do Norte, 27 de julho de2008.
[16] Antes mesmo da criação do Palácio de Acolhimento ao Menor (1991), em 1988 já funcionava no prédio a Sociedade Feirense de Apoio ao Menor (SOFAM). Ver: Lei de utilidade publica n° 1.130 de 7 de outubro de 1988. Câmara de Vereadores. Feira de Santana.
[17] Folha do Norte, 19 de setembro de 2008.
[18] Idem.
[19] O advogado foi cedido pela ADUFS, quem paga seus honorários.
[20] Documento ao Prefeito. 20 de outubro de 2009. Comissão de Defesa do Palácio do Menor. Este texto é o mesmo encaminhado como denuncia pública no Ministério Publico do Estado da Bahia em 2009.
[21] Idem. Negrito do original.
[22] A lei de usucapião refere-se à posse compulsória de terreno ou imóvel, devido ocupação por tempo especifico indicado na lei para casos diferentes.

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